domingo, 15 de junho de 2008

Sr. Ministro da Cultura, por favor explique.


«O entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa e a sua divulgação constituem o instrumento indispensável na resolução de problemas de coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança. Só assim poderemos participar, e a nossa participação é essencial na criação de um estado mundial de ordem baseada no direito e de progresso. (...) Por isso Portugal ratificou o acordo ortográfico da língua portuguesa e criou um fundo para o aprofundamento da língua nas regiões do mundo que contam com comunidades de portugueses e nos países da CPLP.»

J. A. Pinto Ribeiro | Ministro da Cultura
[ citado por Marco Antinossi | Agência Lusa | S. Paulo | 10-06-2008 | 16:01:33 ]

Preocupam-me, enquanto professor, investigador e cidadão, a generalidade das declarações estranhas que o Ministro da Cultura proferiu no Dia de Portugal no Consulado Geral de Portugal em S. Paulo. São declarações vagas e confusas que tocam matérias de extrema importância linguística, política, científica e cultural, as quais não podem, entendo, ser abordadas com tal “vaguidez” e confusão por um alto responsável da governação, ainda para mais em dia e em contexto tão simbólicos.

O parágrafo em epígrafe preocupa-me particularmente, pelo que me aterei a ele exclusivamente. Do ponto de vista formal, está muito mal construído (aliás o conjunto das declarações apresenta deficiências inaceitáveis de redacção). Será problema do texto original do Ministro ou da transcrição do repórter? Na ausência de uma versão autorizada ou corrigida só posso especular.

Vejamos, na sequência “O entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa e a sua divulgação” não se percebe qual é o antecedente da expressão anafórica “sua divulgação”. Explico-me: uma anáfora em Linguística é uma forma ou sequência de formas que remete para outra(s) anteriormente presente(s) no mesmo enunciado; assim, “sua divulgação” recebe significado pleno pela sua relação com uma expressão antecedente, a qual destaca ou especifica. Admitindo que “língua portuguesa” é o antecedente (e estou a conjecturar), o enunciado não deixa de ser bizarro. Aceitando, no entanto, esta conjectura como boa, pode-se tentar reformular a declaração do Ministro, no sentido de a clarificar, assim:

«A reforma ortográfica que Portugal aprovou é consequência da vontade de Portugal participar na criação de “um estado mundial de ordem baseada no direito e de progresso”, e a participação nessa criação decorre da “resolução de problemas como coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança”, os quais serão resolvidos pelo “entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa” e pela divulgação da mesma (?).»

Qualquer que tenha sido a intenção discursiva do Ministro da Cultura, ou qualquer que seja a interpretação do enunciado, estamos perante uma declaração inquietante — mesmo dando de barato que “coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança” não são problemas e que o enunciado peca, como se vê, por problemas graves de formulação.

O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) parece ser uma simples peça de um jogo de xadrez geo-político que nos escapa e que nunca tinha sido antes abertamente referido pelos nossos governantes. Teremos porventura de aguardar as “medidas importantes para a expansão do português no mundo” que, neste 10 de Junho cheio de novidades, o Ministro dos Negócios Estrangeiros anunciou que o Primeiro-Ministro iria anunciar. Talvez este puzzle “globo-estratégico” se torne mais claro por ocasião da cimeira da CPLP. Ou não.

Voltando ao AO. Sejam quais forem as medidas ou posições do governo português em matéria de política internacional, seja qual for a importância do relacionamento institucional e cultural estreito de Portugal com as nações de matriz linguística portuguesa, o interesse nacional sobreleva, em todos os planos e dimensões jurídicas e diplomáticas, de quaisquer compromissos ou agendas internacionais. Não pode deixar de assim ser, no quadro jurídico-constitucional que nos rege. Esse quadro jurídico-constitucional consagra (1) a qualidade do ensino e a integridade do uso da língua portuguesa como valores constitucionalmente garantidos, (2) a obrigação do Estado de prestar contas sobre a gestão dos assuntos públicos, e (3) os direitos dos cidadãos de serem informados sobre actos do Estado e de exigirem a cessação de actos ou situações lesivos do património da Nação, o qual património inclui necessariamente a língua, o seu uso e a sua ortografia.

Ora, o AO põe em causa valores como estabilidade cultural, ortográfica e pedagógica, e é elemento perturbador e disruptor da qualidade do ensino. O domínio escrito da língua portuguesa é a chave que abre a porta de todas as outras áreas do conhecimento, logo, o comprometimento da estabilidade do ensino do português porá em causa a qualidade do ensino de todas as outras matérias e disciplinas. Do ponto de vista da coesão social e da qualificação profissional e cultural dos cidadãos portugueses, o AO é objectivamente um atentado contra a educação, a cultura, a língua e ... a Pátria.

Do ponto de vista da qualidade da nossa democracia e da nossa cidadania, o processo através do qual esta reforma foi elaborada e está a ser imposta viola todos os preceitos morais e jurídicos que devem reger uma sociedade aberta moderna: não só NÃO HOUVE QUALQUER DISCUSSÃO PÚBLICA em fóruns idóneos, como FORAM IGNORADOS PARECERES IDÓNEOS MUITO CRÍTICOS que aconselhavam inequivocamente os decisores políticos a não aprovarem o AO, pela natureza das suas múltiplas e profundas deficiências.

O caso do parecer perdido ou ignorado da Associação Portuguesa de Linguística de 2005 é exemplar: pedido pelo Instituto Camões, na sequência da assinatura do 2.º Protocolo Modificativo do AO, só recentemente, em Abril de 2008, foi tornado público (por ocasião da audição parlamentar sobre o AO). E foi tornado público pelo emitente (a APL, cujo sentido cívico deve ser aplaudido) e não pelo requerente. Como foi isto possível?

(abordarei o teor deste parecer fundamental em ocasião mais oportuna)

Assim sendo, e posto isto, não consigo descortinar de que forma o monumento de inépcia e insensatez que é o AO poderá contribuir para a criação de um “estado mundial de ordem e de progresso”, ou para erradicar problemas relativos à “coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança” nas diversas lusofonias afectadas pelo monstro acordortográfico, dado que o teor do mesmo compromete a coesão social e o desenvolvimento dos povos afectados, e a sua imposição compromete a plenitude da democracia nas comunidades mais afectadas. Isto para não referir o fosso ortográfico que se cavará entre as várias lusofonias pela ratificação e eventual aplicação do AO em apenas três países (nos termos do 2.º protocolo modificativo de 2004).

Por tudo isto, Sr. Ministro da Cultura — e partindo do princípio de que V. Ex.ª leu, ponderou e conhece bem o conteúdo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 — peço-lhe, respeitosa e encarecidamente, que explique.

Explique, por favor, o sentido profundo das suas declarações e explique o seu entendimento das consequências da aplicação da reforma ortográfica do Acordo de 1990, entendimento naturalmente baseado no conhecimento privilegiado que V. Ex.ª e o seu Ministério têm do assunto.

António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa

Sem comentários: